sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Um Dia de Besta


Um Dia de Besta


Era uma quarta-feira de 29 de março de 1995. Em meu roteiro a serviço de minha empresa constavam vistorias de prédios no Piauí: Teresina, Campo Maior e Esperantina.

Naquela época, a companhia aérea com mais vôos para o Piauí era a Vasp. Saía cedinho de Fortaleza por volta das sete da manhã ainda no velho aeroporto Pinto Martins da Luciano Carneiro.

Desembarcava em Teresina com um bafo de ar quente e úmido na cara e, às oito já estava a cruzar o centro de Teresina, desviando-me de mesas e camelôs na Rua Rui Barbosa. Hospedava-me pelo centro mesmo no Hotel Teresina Palace. Também a capital piauiense não dispunha de outros hotéis, não havia prédios nem shoppings centers que hoje são testemunhos do quão a cidade evoluíu. O jeito era ficar pelo centro mesmo. Assistir à tardinha a um filme no velho Cine Rex e voltar para o hotel.
Cine Rex - Teresina

Na agência Teresina encontrava-me com um velho eletricista, consertador de ar-condicionado e funcionário faz-tudo, chamado Edmir Gallas, que se orgulhava de conhecer cada palmo do prédio. E, todas as vezes, estava ele a narrar: Luiz Lopes, você sabe quantas vezes eu consertei este fan-coil? Este piso foi colocado em 1964 e até hoje está brilhando. É pedra boa lá de Piripiri.

Subia até o último pavimento onde hoje há um auditório e ele continuava a mostrar a pilha de tralhas, computadores Cobra e IBM, motores velhos, induzidos, ventiladores, máquinas de escrever Remington e sabe mais lá o quê!  O saudoso Edmir Gallas não me deixava trabalhar;  ficava me passando o relatório de tudo quanto fizera desde a última vez que havia vistoriado o prédio. Por fim, subíamos até a última laje onde mais uma vez ele apontava para os velhos condensadores de máquinas de ar-condicionado e hastes de pára-raios, sempre reclamando das velhas telhas de amianto quebradas. De súbito apontava: Eita lá vem chuva!.....Olha lá, Luiz Lopes como o Rio Parnaíba está azul, nem precisa olhar para o céu, olha p’ro leito do rio que você vê quanto toró vai cair..... E eu apenas ria para encerrar o assunto, pois se falo meia frase, ele engata mais duas horas de conversa.

Rio Parnaíba tocando o centro de Teresina

No outro dia parti para a Rodoviária Lucídio Portela e embarquei no interurbano para Esperantina. Fui direto para o melhor hotel da cidade, chamava-se Rimo Hotel, pertencente a uma rede conhecida no Piauí. Possuía boas acomodações, piscina e um bom café da manhã com tapiocas, carne-de-sol, mugunzá, sucos, café, leite, queijo coalho e broas, tão comuns em terras piauienses.

Rodoviária Lucídio Portela - Teresina

Após o check-in, fui dar uma volta pelas áreas comuns e pelo deck. Lá estava um senhor gordo, aparentando uns sessenta anos. Logo perguntou-me de onde era. Simpático, bem vestido, apresentou-se como alto representante de farinha de trigo Dona Benta do Grupo J Macedo, estendendo-me à mão um cartão de visitas.

Muito inexperiente, com meus vinte e poucos anos, disse logo onde trabalhava, o que fazia e o que vinha fazer. E neste mote, o nobre senhor representante especial das farinhas de trigo Dona Benta, disse logo que conhecia um amigo meu também engenheiro, que tinha um sobrinho que estudara no Colégio Militar, que era primo de um antigo diretor do Banco e tudo mais.

Passou-me seu currículo de homem honesto e probo, de amigo prestável e trabalhador.

No outro dia, cedinho estava já no café-da-manhã oferecendo-me carona até o centro da cidade, pois o hotel era distante. Pensei logo: Daqui que o taxi chegue!.....vou logo com o Geraldo para o centro e mais cedo concluo o trabalho para retornar à Teresina, donde embarcaria noutro vôo da Vasp que decolaria às 23:55h. Como chegaria de madrugada em Fortaleza na 6ª feira, nem mais iria trabalhar. Que bom!.

Aceitei então a carona do distinto e honesto Geraldo até a agência do Banco. Logo foi-se apresentando ao gerente e vendo se era possível eu emprestar-lhe duzentos reais, pois seu cartão era do Bradesco e na cidade de Esperantina não havia como sacar.

De prontidão, saquei o empréstimo para o Geraldo que embolsou rapidamente como se nunca mais fosse devolver aquela gorda quantia. Gorda sim, pois em 1995 o Plano Real ainda era jovem e o real valorizado.

Após o meio-dia, terminados meus trabalhos em Esperantina, fui para a rodoviária pegar o ônibus para Teresina. Chegaria à noite, mas com tempo suficiente para embarcar no Vasp para Fortaleza.

Quando passara um Chevette SL cor prata acenando: - Luiz, estou indo para Teresina, você não quer ir comigo?

Ora, com aquele calor e um ônibus à minha espera com várias paradas até Teresina, aceitei a carona do Geraldo.

Conversa vai, conversa vem, logo o Geraldo foi se contradizendo nas suas gabolagens e nos seus vanglorios. Mas nem isto me fez minimizar a confiança no velho senhor.

E, chegando em Teresina já no aeroporto, na Praça Santos Dumont, agradeci ao Geraldo. Talvez cansado pelo calor piauiense, talvez porque todos nós temos mesmo um dia de sermos bestas. Aquele era meu Dia de Besta.
Praça Santos Dumont - Aeroporto Petrônio Portela - Teresina

O Geraldo, descaradamente me pede mais um favor:

- Dr Luiz, por favor leve para minha esposa este envelope. Mas tenha cuidado. Nele há mais de cinquenta mil reais em cheques que ela deverá depositar amanhã em Fortaleza.

- Também você não me leva a mal se eu pedir para ver sua identidade. É apenas por segurança, pois estes cheques não são meus. Apenas para dizer à minha mulher seu nome completo e coisa e tal.

E, neste lance de se mostrar preocupado com minha honestidade para encobrir sua malandragem, o Geraldo brecou meu núcleo caudato, parte do cérebro responsável pela confiança ou desconfiança em alguém.

- Tudo bem, Geraldo! Disse eu ingenuamente naquele dia de besta, de abestado que fui.  E logo o velho e distinto malando emendou:

- Vou lhe pagar seus duzentos reais e, mais uma vez: Muito Obrigado!. Vamos na máquina do Bradesco. Tonalizou o tal Geraldo.

- OK, vamos então.

- Luiz, puxa vida! Não sei como vou fazer. O cartão está com problemas! Desmagnetizado. Não saca. E agora? Mas não tem problema não! Vamos ligar para minha mulher que ela já saca o dinheiro em Fortaleza e, quando você chegar lá para entregar o envelope, ela lhe paga.

O malandro logo simulou uma ligação para a esposa na minha frente e emendou num ar hipnótico:

-Amigo Luiz, como você vai levando mais de cinquenta mil reais neste envelope, você não acharia ruim me emprestar mais duzentos reais, né? Minha mulher já saca os R$400,00 e pronto. Tudo OK?!.

- Como abestado, lá estava a entregar mais duzentos reais ao Geraldo.

Despedi-me do velho Geraldo e embarquei no vôo Vasp.

Assim que entro no avião, encontro-me com a Adriana, uma amiga minha que estava no vôo vindo de Brasília. Acho que a hipnose e meu dia de besta havia terminado. Afinal já era mais de meia-noite! Logo logo contei à Adriana todo este enredo. E ela num sorriso com mil palavras, disse: - Luiz, abre este envelope! Tu caíu direitinho.

Mas também não abri. Talvez por medo, talvez por vergonha ou mesmo por honestidade. Fiquei me remoendo até Fortaleza.

Cedinho acordei e fui procurar o endereço de entrega do envelope. Descobri que o velho Geraldo me informara o endereço de sua ex-mulher, de quem recebi todas as informações do meliante Geraldo. Aquilo é um cafajeste! Muita gente procura ele! E é porque é advogado! Você foi enganado, meu filho! Veja o que tem dentro deste envelope!

Rasgando o envelope, logo caíram papel picado e folhas de um velho caderno de espiral em branco. Nada havia, nem cheque, nem um rabisco.

Fiquei vermelho. Mas como me senti abestado! Aquele realmente foi meu dia de besta.

Lembrei-me de ligar para o hotel Rimo lá de Esperantina e perguntar na recepção pelo endereço do tal Geraldo. A princípio não quiseram me informar, mas dissera que era amigo do mesmo e tinha que entregar um remédio urgente para sua velha mãe. Consegui então o endereço do meliante: Rua Teresa Cristina quase próximo ao prédio do Dnocs da Duque de Caxias.

Corri prá lá. A casa era daquelas meio antigas, pintura amarela, desbotada e janelas trabalhadas, aparentando mais com a casa da Dona Liliosa lá de minha Reriutaba. Bati à porta e logo fui recebido por duas senhoras. Uma era a mãe do Geraldo, senhora simples de sorriso brando no rosto enrugado e outra era a irmã do meliante. Num espasmo, afastei-me da velha senhora, puxando pelo braço da mulher mais nova, a quem narrei o ocorrido, ameaçando e prometendo mil coisas contra o vagabundo e velho Geraldo. Com as mãos na cabeça, ela lamentava: - Oh meu Deus, meu irmão não tem jeito. Ainda com tantos problemas, vai acabar um dia mal!

Meio desesperada, a irmã do meliante ficou de me ligar tão logo este voltasse de viagem e assim o fez, devolvendo-me ainda duzentos reais arrancados à força do trapaceiro.

Aquele foi meu dia de besta do qual me orgulho, pois só aprende quem passa. E como o prejuízo não foi tão grande, a experiência ficou em conta, pois me serviu como vacina para tantos outros que nos querem fazer de besta.

Só foram ruins as brincadeiras dos amigos e de meu Tio. Os amigos me pediam: Luiz, meu nome é Geraaaldo! - Me empresta duzentos!

E meu tio ria, dizendo: - Meu sobrinho, graças a Deus que a carona foi curta somente de Esperantina a Teresina. Já pensou se fosse de Esperantina à Fortaleza, o que você não teria dado ao Geraaallldo???

Fica aqui narrada a história de Meu Dia de Besta!

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