domingo, 24 de fevereiro de 2013

Minha Rua

Minha Rua

Rua 25 de Setembro


Para mim, começava na esquina da Dona Artemísia e terminava na farmácia do tio Assis. Muito embora estendesse seus limites até a praça do Ivan Rego, a rua 25 de Setembro, no meu horizonte infantil, limitava-se a tão somente uma quadra.

A casa da Dona Artemísia era a mais bonita, com jardim, mureta com detalhes em alto-relevo e combogós à meia-altura. Quase nunca entrava lá, permanecia a maior parte do tempo fechada, talvez por ela trabalhar nos Correios o dia todo. Era uma senhora viúva, muito amiga de meus pais que gostava de contar piadas de grosso calibre. Somente quando fiquei adulto é que realmente a conheci melhor, seja porque nunca deixou de enviar um telegrama dando os parabéns a meu pai em seu aniversário, seja porque aproveitava cada dia de sua vida viajando pelo exterior e retornando a Reriutaba com alegria no rosto e piadas pesadas na voz. Nada que prejudicasse sua reputação e respeito, mas que servia de elo para tornar-se mais próxima dos jovens. Dona Artemísia foi morar em Fortaleza e hoje sua casa passou a ser habitada pelo Dr Delfino, um veterano dentista da cidade.

Vizinho à Dona Artemísia, seguiam-se casas mais simples. Uma delas de apenas uma janela e porta na fachada era a de Seu Chico Miraíma, antigo vigia do comércio, cuja braveza era representada pelo seu apito e um velho cacetete. À tardinha, ouvia-se de seu interior a voz estridente do cantor Raimundo Soldado sintonizada na rádio Tupinambá de Sobral.


Acho que havia uma casa fechada entre Seu Chico Miraíma e a carpintaria de Seu Tito. Era lá que ía sempre, coletar pedacinhos de madeira para fazer um brinquedo, um carro de madeira ou para assistir à confecção de um caixáo de defuntos. Logo que se iniciava o badalar do sino da Igreja, sabíamos que alguém havia morrido e que  Seu Tito iria atender a uma encomenda: um caixão de defuntos. Ele ía na casa do finado, tirava suas medidas e então iniciava a feitura do armário horizontal. Primeiro serrava a parte dos fundos em forma de losango chanfrado, depois fazia as laterais e a tampa. O tecido, para envolver a armadura de madeira e que servia como acabamento final, comprava na loja do Seu Chaguinha Cabaceira. Se o morto fosse adulto, geralmente era todo preto com uma cruz branca na tampa. Se fosse criança, geralmente era azul. Eis o motivo de se nominar velhos fuscas azuis-claros com o nome: “da cor de caixão de anjo”. E nesse cenário, lá estávamos eu e meu primo James de olhos abertos, envoltos de curiosidade e de muito medo. Mas, tirando este cenário fúnebre, Seu Tito era um senhor sereno que gostava de nossa presença e nunca brigava conosco por estarmos ali catando pedaços de madeira.


Depois do Seu Tito, seguia-se a casa de Dona Totonha, uma senhora de seios fartos, esposa de Seu Zé Rocha e mãe de uma tal de Graças. Acho que somente ouvia o ralhar da Dona Totonha com a rebeldia dessa filha. Somente lembro disso. Dona Totonha foi-se embora, Seu Zé Rocha ainda percorre lentamente nossa rua e a tal de Graças, numa mais ouvi falar. A casa recebeu novos moradores. A Aurinha e seu esposo Manel Pé Seco. Motorista exímio, pai de duas crianças que também gostavam de minha Tia Antonieta: eram o Márcio e a Kênia. Infelizmente, o Manel partiu cedo deste plano e sua esposa foi morar em Fortaleza.

Vizinha à Aurinha, estava lá a casa que mais gostava. Era a da tia Antonieta. Viúva de meu tio Benedito, irmão de minha avó materna, tinha cinco filhos. Era para lá que corria após o almoço para ouvir histórias de assombração, na hora do café das duas para subir no pé-de-goiaba e, à tardinha, para matar azulões, rolinhas e tantos passarinhos mais. Se fosse hoje, certamente estaria condenado à prisão perpétua por este dano ecológico com minha espingarda de pressão. Minha Tia Antonieta sempre teve um amor materno por mim e pelas minhas irmãs. À noite, quando minha mãe saía para o Colégio, onde era professora durante todo o dia, ficávamos na casa da Tia Antonieta que nos acolhia em seu colo e contava histórias de trancoso, umas engraçadas e infantis, mas vez por outra, deixava-nos com os olhos esbugalhados de tanto medo.

Depois da casa da Tia Antonieta, seguiam-se duas casas gêmeas: a do Seu Joaquim da padaria e a minha. Foram casas construídas na mesma época e com fachadas e plantas idênticas. Apenas as cores distinguiam as duas moradas. Até dois pés de algaroba adornavam suas frentes e  serviam de uma agradável sombra ao meio-dia. Suas calçadas também eram de um mosaico antiderrapante de cor cinza. Costumava também frequentar a casa do Seu Joaquim quando sua esposa, Dona Ritinha derretia a nata do leite e fazia manteiga da terra, restando a chamada “borra”. Achava uma delícia esta tal de borra.

Lá em casa, gostava mais do quintal, onde costumava fazer várias casas de alvenaria em miniatura e estradas na mesma escala para brincar a tarde toda. Se não estivesse no quintal, certamente estaria em cima do telhado, seja atirando em calangos, lagartixas ou fazendo medo às minhas irmãs, quebrando telhas e criando goteiras para o próximo inverno. Mal sabia o papai o motivo de tantas goteiras com as primeiras chuvas. Afinal, já sabia a quem atribuir a culpa: aos gatos que infestavam as casas daquela época.

Depois lá de casa, seguia-se por cerca de 20 metros, inúmeras portas do armazém do Seu Luís Taumaturgo. Era lá onde se armazenavam as safras da castanha-de-caju, do algodão, da oiticica, do caroço de algodão, da cera de carnaúba. Puxa, como minha cidade era auto-suficiente de produção. Havia uma atividade econômica que dava sustentabilidade a tantas famílias. Hoje não vejo mais isto. Tudo o que a cidade consome vem de fora, embalado e com código de barras.

Somente depois dessas portas, avistavam-se os pés de Benjamim da Dona Abigaíl. Ah, antes havia a casa do Seu Tomé, um senhor já idoso que ficava sentado na calçada com seu cajado ao finalzinho da tarde. A casa da Dona Abigail já era mais alegre pela presença dos filhos. Sua vizinha era a Quita, esposa do Gerardo Nel, nosso parente. A Quita sempre foi polêmica, mas o Gerardo Nel era mais convidativo, que gostava de sentar-se à noitinha juntamente com vários frequentadores: meus pais, o tio Deusdedit, o tio Assis e quem mais ali passasse. Quando não terminava em teimosias, terminavam a noite em gargalhadas.

Minha rua então já terminava, fechando a quadra com uma portinha da farmácia do tio Assis, a oficina do Seu Antônio Mororó e pela própria farmácia que primeiramente pertencera a meu avô paterno, José Calixto.

A oficina do Seu Antônio Mororó era também local bom de se visitar, pois criança gosta de fogo, de novidade e era ali que ficava vendo como o Laércio derretia uma joia de ouro ou atendia a uma encomenda de alianças para os noivos. Ali seu Antônio Mororó passava tardes com seu binóculos consertando relógios. Eram profissionais inseparáveis. Partiram também cedo e hoje a velha oficina abriga uma venda de frangos abatidos.

À frente destas casas, oficinas, carpintarias e armazém de minha rua, estava lá a linha férrea, companheira eterna de minha infância. Sempre subia aquele talude para empinar pipas, para jogar bila (bila ou bojo, triângulo, linha do fona: termos da época) ou para riscar o chão molhado em brincadeiras de triângulo. Era uma haste metálica que jogávamos no chão, tentando prender por linhas riscadas no solo o adversário. Nunca mais vi crianças brincando deste tipo de coisa.

Motivo de espera e atenção para todos, especialmente para as crianças de minha época era a passagem do trem de passageiros. O chamado “horário”. Geralmente passava às 13 horas. Vinha de Crateús em direção à capital. Logo ao meio-dia começavam passar as rurais, jeeps, corcéis e outros carros de frete. Pegavam-se  passageiros que os fretavam para concluir a viagem para as zonas rurais e distritos mais afastados da cidade. Com o trem, juntavam-se moleques de ruas, vendedores de roscas, tabuleiros de pirulitos, carrinhos de picolés. Também havia vendedores de picolés-de-saco, o tal dim-dim; estes, caseiros com sabores mais diversificados: coco queimado, cajá, graviola ou peroba, assim chamávamos o maracujá . Lembro-me que havia uns três carrinhos de picolés do Seu João Gildo. Morango, goiaba e baunilha. Às vezes só havia estes três sabores. E era muito bom! Muito melhor que os Kibons de hoje em dia. Atualmente, trens só cargueiros, nada de passageiros!

Cargueiro transportando gigapneus para o Pará

Nesta foto, vê-se a estação ferroviária de Reriutaba, quando eu percorria um troller ferroviário de Sobral a Ipu numa inspecção de engenharia.

Ao final do dia, juntavam muitos meninos e íamos jogar bola na estrada de areia que ficava atrás da linha férrea. E haja briga, puxão de cabelo, pedra atirada e tudo mais quando se discutia um gol feito ou não.

Tempo bom de uma infância interrompida tão bruscamente pela minha partida para estudar em Fortaleza. Nunca mais tive a serenidade na alma nem a paz nos meus dias, seja pela rotina, pela insegurança dos tempos atuais. Ah, que saudades que tenho de minha infância querida, da aurora de minha vida, que os anos não trazem mais e que os anos não trazem mais. Agora plagiei o Cassimiro:


Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus
— Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Fortaleza, 24 de fevereiro de 2013
Luiz Lopes Filho.




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