sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Buchecha


Buchecha

Viajei para Reriutaba na 3ª feira, cedinho, por volta das cinco da manhã. Peguei meu primo no apartamento dele e rumamos à nossa cidade.

Lá chegando, tossindo muito, abracei meu pai;  ele  abençôou-me e, instantaneamente, passei direto para meu quarto no pavimento superior. E, como não fazia isto costumeiramente, despertou logo a preocupação dele.

-O que será que meu filho tem? Tossindo tanto, calado, quase não conversou! Este foi seu pensamento que ouvi bem nitidamente.

Deitado na minha cama, preocupado até mesmo com aquela tosse que não me cedia espaço para respirar, ouvi o lento passo dele galgando cada degrau da escada.

– Luiz, o que você tem? Tá doente?

– Não, pai! Somente esta tosse mesmo e cansado da viagem. Mas, não. Também tinha minhas preocupações do trabalho, dos compromissos, do dia-a-dia.

No outro dia, como adormeci por volta das vinte e uma horas, cinco da manhã já me deparei com a mamãe na sala me esperando para ir ao sítio. Havia comprado em Fortaleza umas tintas, umas lâmpadas para serem  substituídas e outros adereços para nosso espaçozinho do pé-de-serra.

Flores lá de nós

Lá chegando, vi nosso caseiro, o Sérgio Buchecha. Sorridente, tranquilo, pintando na sua calma o portão do sítio. Vez por outra, passava a mão na cara para espantar uma borboleta amarela.
– Sérgio, e aí? Tudo bem? Tá de moto nova! Que bom, dirigi-me a ele.
– Oi, dotô, tá tudo bem. Se melhorar, estraga! Dizia, inclinando o rosto para cima.

Também pudera: sem preocupação com contas, com saúde, com previdência, com empregados, com impostos! Que vida boa essa do Sérgio, pensava eu nos meus absortos. Tudo bem que fosse sacrificado financeiramente, morando numa simples casa, sem mimos nem tecnologia, sem espaço nem ambições.

Ah, aí estava então o segredo de sua felicidade! Sem ambições, mesmo que as fossem sadias. Sem preocupação no amanhã! Que vida boa essa do Buchecha, prosseguia em meu pensamento numa momentânea e sadia inveja.

Hoje, lendo um artigo que minha mãe enviou-me por email, lembrei do Buchecha e de tantas outras pessoas que são felizes apenas com o básico do básico, com o respirar e um pouco de pão, com o alvorescer e um gole d’água. Essa era a riqueza do Buchecha.

No artigo do Frei Beto, contextualiza-se o modo de viver do Buchecha num total paradoxo a(o) inteligente, esbelto(a), rico(a) e apressado(a) executivo que passa fisicamente vivo e espiritualmente morto nos hall de nossos aeroportos.  Vejamos então:

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam.
Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente.
Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'.
Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'.  'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...'
'Que tanta coisa?', perguntei.
'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias!
Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!'
Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...
A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!'
O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.
O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, autoestima, ausência de estresse. Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno.
Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping-center. É curioso: a maioria dos shoppings-centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald’s...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:... "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser Feliz"!!

Fortaleza, 08/02/13
Luiz Lopes Filho (prólogo) e texto de Frei Beto.

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