terça-feira, 8 de maio de 2012

Liz


Liz
Nunca poderia imaginar o quanto nossos pais gostam da gente. Esta constatação só nos acontece quando temos um filho, uma filha. Há oito anos a Liz nasceu e, apesar do pouco tempo, já começamos a escrever um pouco de sua vida, desde seus primeiros passos, seus primeiros balbucios, seus primeiros rabiscos. Lembro-me tão bem do primeiro dia de aula. Rostinho inclinado, dedinho na boca, expressão maior do infantil acanhamento. Bermuda azul e camisetinha branca com o nome Mundo Encantado. Depois vieram outras fardamentas: Tia Léa e agora Antares. Ainda bem que tenho muito para compartilhar sua infância e disto não posso me dispersar.





Rogo ao Senhor muita proteção à minha filha neste mundo cheio de abismos sociais, de pouca fraternidade, de muita ambição, de muita competição doentia. Sei que o tempo vai passar e quero chorar numa feliz emoção quando estiver vivenciando as últimas páginas do  seu caderno cantadas na famosa música de Toquinho: “O Caderno” onde lhes lembro a sensibilidade deste artista:

Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o be-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar
A casa, a montanha
Duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel...
Sou eu que vou ser seu colega
Seus problemas ajudar a resolver
Te acompanhar nas provas
Bimestrais, você vai ver
Serei, de você, confidente fiel
Se seu pranto molhar meu papel...
Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel...
O que está escrito em mim
Comigo ficará guardado
Se lhe dá prazer
A vida segue sempre em frente
O que se há de fazer...
Só peço, à você
Um favor, se puder
Não me esqueça
Num canto qualquer...(2x)
E que sua infância seja tão bem recordada quanto Cassimiro de Abreu narrou a  dele neste famoso poema:

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus
— Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Luiz Lopes Filho, aos oito de maio de 2012 em Sobral-CE

terça-feira, 1 de maio de 2012

Minha casa era assim

Minha casa era assim

Nos primeiros anos de nossa infância, acostumamo-nos bem cedo com a voz mais grave do pai e, mais afetivamente, com o carinho e o cheiro do colo da mãe. Depois vamos também sentindo e gravando o cheiro da cozinha, de nossos lençóis, do sofá, do canto da sala de visitas e até mesmo com o odor e as cores da velha cortina desfraldada sobre a janela principal da casa.
Nos primeiros anos de minha infância, lembro-me com nostalgia dos traços arquitetônicos, das cores das paredes e do estampado mosaico do piso que ía da soleira da entrada principal até a porta da cozinha.
Como só temos a versão arquitetônica do Autocad,  não se dispondo de nenhuma versão em forma literária, fica muito difícil descrever uma casa sem perspectiva, sem planta baixa ou mesmo sem foto, mas somente com palavras. Vou tentar...,mas desculpem-me os mais exigentes nesta descrição.
Costumava tomar banho cedo, por volta das quatro da tarde e andar de bicicleta apoiada em rodinhas laterais pela calçada de mosaico cinza estampado com  quadradinhos e losangos simétricos . Cabelo liso que nem espaguete escorrido, óculos prateados com lentes anti-miopia-astigmatismo, bermuda engomada com bolsos laterais em diagonal, camisa branca com dois tracinhos à altura do peito e com mangas com um vezinho invertido (em formato de “v”) no antebraço que mais servia para os mais velhos puxar com o dedo indicador e fazer um estalo. Acho que deveria ter 8 anos de idade.
A fachada da casa tinha a parede pintada em verde cana; a porta principal possuía duas folhas com venezianas dispostas em quatro quadrantes na cor bege apoiada numa soleira de pedra vermelha. Na mesma altura do batente que divergia da calçada, havia uma boca de água pluvial, onde costumávamos tomar banho nas primeiras chuvas do inverno. Ah, numa cota de um metro e meio, bem alta para nós crianças, havia um janelão principal em vidro com venezianas em transparência incompleta. Pelo lado interno, havia uma cortina que minha mãe tinha ciúmes, pois era de um tecido mais caro. Às vezes era de um tom vermelho e, em minhas últimas memórias, num tom pastel com flores e arranjos em relevo. Tinha o costume de me assoar naquela cortina quando ficava gripado, logicamente sem ninguém ver.
A sala principal era disposta com um sofá e duas poltronas em tom marrom-escuro. No centro, uma mesinha em vidro com algumas pratas e bebelôs, dentre os quais um jarrão verde que, até pouco tempo,  vi-o desprezado na garagem de meu pai.
Logo de frente para a sala, a alcova de meus pais.  Duas portas bege para a sala de visitas e uma porta para o corredor. Na bandeirola, uns filetes de madeira dispostos em forma de dois losangos circunscritos. Dentro do quarto de meus pais havia uma  porta que fazia comunicação com meu quarto. Naquela época, acho que somente eu e minhas duas irmãs. Ainda éramos três quintos dos filhos. Depois destes dois quartos, havia uma sala de estar. Ali ficava uma televisão da marca Canarinho ABC em preto e branco apoiada em quatro pernas da própria tevê; uma arca com os cristais, bandejas, travessas e melhor cutelaria de minha mãe. Nesta mesma sala havia também uma vitrola. Meu pai costumava trocar a agulha desta radiola quando o som se apresentava com algum ruído estranho, sinal de que a agulha teria que ser substituída. Aos domingos, vinham lá prá casa por volta do meio-dia meu pai, acompanhado de Seu Saldanha, agente da estação ferroviária, o Seu Luís Castro, prefeito da cidade àquela época, o Gladstone, o Seu Adjemir, o Compadre Otávio Mororó e outros amigos.  As faixas mais repetidas na radiola eram Perfídia e Paloma.
Nesta sala de estar havia uma janelinha também em vitrô que interligava com uma pequena área. Ali costumava tomar banho num chuveirão que, nem sei o porquê, tinha um forte jato d’água, diferente das demais torneiras. Foi ali que minha irmã mais velha intoxicou-se  ao tocar nas folhas de um jarro daquela planta chamada de “Comigo Ninguém Pode”.
Depois desta sala, vinha um pequena continuação do ambiente, onde havia uma mesa principal, uma geladeira branca Cônsul que servia de apoio a um pinguim alvinegro e um armário encostado na parede canhota onde se guardavam as baixelas do dia-a-dia. Num canto da parede, à meia altura, apoiado num pedra semicircular um filtro de cerâmica encarnada da marca Jaguar, fabricado em Limoeiro do Norte. Parece que filtros no Ceará só havia desta marca e era o antecessor de nosso atual gelágua. Depois deste ambiente, o mosaico deixava de recobrir o piso. Chegamos à cozinha:  um fogão branco de quatro bocas, um móvel de alumínio piramidal onde se guardavam da frigideira até a panela maior em sua base.


Ali era nossa cozinha. Gostava do almoço dos sábados, principalmente porque tinha um convidado especial, Seu Firmino. O almoço era quase sempre filé, alface, purê, salada de beterraba, cenoura e batata inglesa. Depois, um abacaxi em rodelas. Na sobremesa vinha um pudim e, quem quisesse mais alguma coisa, estendia com um pires de doce de buriti.
Lá no final, à esquerda, havia uma despensa onde se guardavam mais panelas. No canto, um baú e, sobre uma alta prateleira, garrafas de manteiga da terra, além de litros de banha de porco que substituíam o óleo de cozinha. Acho que foi esta banha de porco a responsável pelo primeiro infarto do papai. Laboratório Emílio Ribas, Clementino Fraga e Pasteur ficavam a trezentos quilômetros de distância. Sete horas de trem ou 8 horas de ônibus na velha empresa Horizonte e em estrada carroçável até Sobral. Somente duas opções para se chegar em Fortaleza: fedendo a ferro ou à lama. Quem se importava com colesterol bom ou ruim, triglicerídeos, creatinina ou qualquer outra destas taxas tão comuns em nossas vidas e em exames nossos de hoje em dia?
Lá no final da casa, havia um banheiro bem amplo e, à sua frente um fogão à lenha. Ali se cozinhava a maioria de nossas refeições em panelas mineiras de alumínio fundido. Era o feijão, o arroz e a carne. Somente alguma coisa como macarrão, ovos fritos ou complementos eram feitos no fogão a gás que ficava na cozinha principal.
Engraçado era como o piso de minha casa me faz lembrar de minha infância. Era tão bem tratado para ser um simples mosaico, mas também não tinha muita coisa naquela época: granito? porcelanato? cerâmica de melhor qualidade?  Que nada! Piso nobre e bem cuidado: mosaico estampado ao estilo do piso de muitas igrejas de nossos interiores.
Quinzenalmente, nossa casa era encerada. Primeiro lavava-se toda a casa, depois escorria-se  a água com um rodo e; neste interim, ali estávamos nós crianças a praticar surf de peito, deslizando pelo chão molhado e ensaboado como uma foca desliza pelo gelo. Enxugava-se o piso e, depois do meio-dia, após a lavagem das louças do almoço, passava-se cera de carnaúba por todo o piso. Em seguida, ligava-se a enceradeira. Algum adolescente hoje em dia saberia descrever o que é enceradeira? Lógico que não!  Nem conhece máquina de escrever, um objeto tão importante de um passado tão recente e que foi o antecessor de nossos inseparáveis notebooks, que dirá enceradeira!!!???
Quando se começava a encerar, a empregada nos dava carona, permitindo subir no bojo do aparelho e passear pela casa toda. Ela encerando e nós fazendo um room-tour pela própria casa! E este era nosso automóvel de rodas horizontais que ainda hoje está estacionado num depósito em minha casa (veja abaixo)


Ficava um brilho! O mosaico refletia um pouco de tudo após todo este zelo pelo tão nobre piso!
Mas em toda a arquitetura e lay-out de minha casa, não havia lugar mais querido que o telhado.  Acho que noventa por cento de todo meu tempo ocioso, passava que nem gato, andando pelos telhados.
Oficialmente e com a permissão do papai, mensalmente limpávamos a caixa d’água. Subíamos o telhado e abríamos a tampa de concreto da caixa. Ali ajudava meu pai a limpar a caixa d’água e também desfrutava um pouco daquela piscina elevada.
Mas, no resto da semana, do mês e de todo o ano, costumava a andar sobre o telhado, seja para fazer medo à minha irmã, seja para, com uma espingarda de pressão  mirar para os passarinhos que vinham beliscar os mamões amarelinhos do quintal ou para cantar no alto pé-de-canafístula de Seu Luís Taumaturgo. Também eram meus alvos várias largartixas. Muitas ficaram sem o rabo, seja pelos meus tiros de espingarda de pressão, seja pelas pedras atiradas pelas minhas baladeiras (estilingues).
Outro espaço muito frequentado por nós crianças era o quintal. Ali plantei minha primeira árvore: “Meu pequeno cajueiro”. realmente era pequeno, nunca cresceu direito nem deu frutos, acho que a castanha era estéril. Na época da safra de caju, costumava juntar quatro tijolos e fazer uma pequena fogueira que ficava sob uma prancha perfurada de lata de óleo Pajeú (aquela da negrinha). Colocava as castanhas ali e logo o fogo pulava da fogueira para sobre as castanhas. Depois jogava areia e apagava todos os focos de fogo. Depois era só quebrar as castanhas. Nunca me queimei, apesar de meus nove, dez anos de idade. Nem minha mãe brigava. Ora, passava o dia ensinando no Grupo Alfredo Silvano e também na Escola Normal Nossa Senhora das Graças (antiga Casa da Providência).
Quando chegavam as férias, fazíamos umas estradinhas no quintal e, à margem destas, várias casinhas de barros e também de cimento, bem aprumadas, algumas com pavimento superior e também com direito à impermeabilização da laje com filme de plástico. Tudo numa escala de 1:10, ou seja, com uma altura de piso-teto de cerca de cinquenta centímetros no máximo.
Aos poucos, ali deparava-me com uma pequena cidade. Pintava em tinha hidracor recolhida das prateleiras da loja do papai (as cores mais comuns eram bege, verde cana e cinza). As tintas eram à base d’água que tornavam as paredes daquelas maquetes e o cenário do quintal num verdadeiro complexo da versão americana do brinquedo “ little people”.
 Certa vez meu primo, Carlos, filho da tia Antonieta propôs-se a construir um pequeno trecho de uma linha férrea na minha vila do quintal. Ficou formidável. Os vagões tinham suas rodas apoiadas em eixos de bicicletas e rodavam na bitola do trilho feito de latas de óleo. Os vagões não descarrilhavam. Empurravam-se os trenzinhos e eles obedeciam aos pequenos trajetos. Muito inteligentes tanto o Carlos quanto o Zé, seu irmão mais velho!
Quando vinha a chuva, os trilhos e a vila se decompunham totalmente. Então era o jeito mudar o cenário: transformava o quintal numa pequena lavoura. Em valas bem espaçadas, plantava milho que logo espigavam para minha primeira colheita infantil. Já pensou como era bom assar ou cozinhar o próprio milho plantado em meu quintal?!
Esta era minha casa, este era meu quintal, estes foram trechos de minha infância querida que foi interrompida tão precocemente pela responsável preocupação de meus pais em me encaminhar para estudar em Fortaleza.

Luiz Lopes Filho
Fortaleza-CE, 01 de maio de 2012.