quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Caiçara

Caiçara


A Caiçara é um povoado que agrupa pequenas fazendas e algumas casinhas nas redondezas, distando cerca de uma légua da cidade. Fica do outro lado da passagem de nível, um pouco antes da Ponte do Peixe.

Lá moravam algumas famílias como a Calixto que me conecta através de meu avó paterno José Calixto e com minha bisavó materna Adília Soares, filha de Francisco Calixto e Cecília Nepomuceno. Também tem a família Nel e os Rodrigues. Nossa referência da Caiçara era entretanto nosso amigo e parente Gerardo Nel, marido de Dona Quita.

Nas férias combinávamos eu, meu primo James e nosso amigo Pedim para ir de bicicleta à Caiçara passar o dia caçando todo tipo de passarinho: azulões, rolinhas e sabiás. O Pedim numa bicicleta Monark para adulto e pesada pelo atritar de um dínamo no pneu traseiro; tinha também lameiras e um depósito lateral parecido com um alforge. Quase não conseguia sentar-se na cela, exceto nas descida de ladeiras. A do James era uma bicicleta menor da marca Caloi e a minha era uma Monareta roxa de tamanho médio.

Esta foto abaixo mostra minha bicicleta Monareta novinha que havia ganho no Natal. Era já abril de 1975. Ao fundo, o talude da linha férrea e na garupa, meu primo Mardônio. As carnaúbas delimitavam a gleba que chamávamos de "Solta do Seu Quim".



Saíamos cedinho, por volta das seis da manhã, cada um em sua bicicleta pela estrada que tangia a linha férrea. Quando nos aproximávamos do Corte Grande, trecho que só cabia o comboio férreo, deixávamos a trilha paralela à estrada-de-ferro, pois naqueles 150,0m não havia atalho de escape quando do apitar de um trem-cargueiro. Era morte na certa, frase esta que aterrorizava nossa mente infantil.
 Passagem de nível da estrada que interliga Reriutaba a Amanaiara. Do lado esquerdo, a entrada da Fazenda Caiçara.Hoje com pavimentação asfáltica.

Por algumas vezes, ousamos em ir um pouco além, passando da entrada da Caiçara para observarmos de perto e cheios de temor as treliças da Ponte do Peixe. Era lá que muitos passageiros tinham sua cabeça arrancada, eram sim decapitados. Mês sim, mês não, havia uma vítima. Ponte estreita, bitola dos trens antigos e que ainda não fora redimensionada para os veículos atuais.

Quando o maquinista apitava, alertando a proximidade da ponte, algum desavisado, punha a cabeça do lado de fora da janela do trem (chamava-se de horário o trem de passageiros àquela época). E assim, a ponte vitimava o pobre do passageiro. O corpo era trazido para a estação ferroviária, onde o Seu Saldanha buscava distanciar os curiosos do corpo sem cabeça ali estendido. O trem seguia viagem sem aquele desafortunado. Era por este motivo que buscávamos ver na estrutura da ponte algum vestígio de sangue ou algo mais, somente para aguçar o medo e a curiosidade presente na mente humana que começam a tornarem-se inquietas desde a infância.
Ponte do Peixe - Atualmente com alargamento da bitola e treliças. Do lado esquerdo da foto, a lembrança de uma das vítimas.

Voltávamos da Ponte do Peixe e retomávamos a trilha para a Fazenda Caiçara. Ao chegar na Caiçara, o seu Gerardo Nel já nos esperava com uma jarra de leite mugido sob a escuderia do Coló, sujeito pacato de olhar distante e estrábico. A dona Quita já tinha milho verdinho cozido para nós com cuscuz, tapioca, nata, manteiga da terra e muita simpatia.

A casa da dona Quita e do seu Gerardo Nel era de um verde forte com uma varanda frontal com muitos armadores que de dia se colocavam celas, alforges, estribeiras e cordas. À noite, redes alvas e cheirosas para se conversar estórias de assombração.

- Pedim, minino, coidado com esta espingarda socadeira, diabo!

O Pedim nem dava cabimento aos avisos da mãe. Dali era só carregar a espingarda socadeira, entregar uma baladeira ao James e seguirmos para caçar nos arredores.

Separavam-se os chumbinhos e as porções de pólvora, intercarlando-os com buchas no cano da espingarda e socando-os com uma vareta. Procedimento muito perigoso para meninos de 10, 11 anos de idade. Depois colocava-se a espoleta no detonador e pronto. Ali estava carregada a espingarda. Num destes tiros espalhavam-se inúmeros chumbinhos numa revoada de passarinhos. Daí o motivo pelo qual o Pedim era o melhor caçador! O Pedim atirava com 50 chumbinhos de uma vez só, enquanto eu com um chumbinho de espingarda de pressão e o James, com uma pedra somente na liga da baladeira.

Lá se iam: o Pedim de espingarda socadeira debaixo de seu bracinho em formato de “V”, adquirido após uma fratura mal curada; eu de espingarda de pressão e o James, de baladeira. O Pedim sempre ia na frente para evitar que o tiro potente de sua espingarda acertasse-nos. Nesta seqüência de poderio bélico, também voltávamos com a mesma proporcionalidade na caçada. O Pedim com 8 rolinhas fogo-pagô, 4 azulões e duas juritis; eu somente com 04 rolinhas-fogo-pagô e o James sem nenhum abate. Também de baladeira e com falta de mira!.  Mas, para que o James chegasse em casa e mostrasse algo para afagar o ego do tio Osmundo, sempre passávamos duas caças para ele. Um azulão, uma juriti ou coisa assim.

Antes de voltarmos para casa, agradecíamos à dona Quita e ao seu Gerardo Nel pela boa estadia e seguíamos pedalando. Saíamos da Fazenda Caiçara e logo, por cerca de 2 quilômetros, pegávamos a estrada principal que liga Amanaiara a Reriutaba. Imediatamente atravessávamos a passagem  de nível ferroviário e seguíamos entre subidas e descidas, sempre tentando deixar alguém para trás. E nisto se dava uma soltura de corrente da catraca. Graxa, óleo, mais sujeira misturada com penas e sangue dos passarinhos. Todos então se alinhavam na viagem.

Com a proximidade do pôr-do-sol, tentávamos pedalar mais juntos; agora cheios de medo!. Tínhamos que voltar antes das 6 horas da tarde, pois o crepúsculo nos trazia mais insegurança. Na beira da estrada imaginávamos nos deparar com raposas, caiporas e assombrações doutro mundo.

Avistava-se à direita, a Fazenda do Ivan Rego, outra subida, o Corte Grande e, por fim, também à direita a casa do seu Valdemar Vieira e então a entrada da cidade. Chegamos enfim. Exaustos, mas felizes por nos acharmos os melhores caçadores entre os demais meninos da época.

Fortaleza-CE, 05 de abril de 2002

Um comentário:

  1. Que bela narrativa... os detalhes fizeram eu viajar no tempo e lembrar do Coló e de toda a Caicara,tinha tb o seu Pimenta e sua mulher que se nao me engano chamava dona Loira..avos do Pedro..

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