domingo, 5 de abril de 2020

Dobrado “Duzentos e Vinte”

“Dobrado”
Nem imaginava que na capital viesse um dia a morar.
Pela manhã seguia pela calçada da Dona Abigail em direção à Casa da Providência.  Calça comprida azul marinho, camisa polo branca com um brasão do colégio no lado esquerdo do peito. Não havia tantas matérias. Mas, havia o essencial: português, matemática, estudos sociais, ciências e educação moral e cívica. Já bastava!
Ao meio dia, ouvíamos o sino da igreja badalar às “onze e meia”.
E, antes que a irmã Granjeiro badalasse o do colégio, saíamos em disparada como um rebanho de cabritos desgarrados.
Subia na caminhonete do Zé Trajano e carona pegava, pois ele seguia até o escritório do INPS que ficava vizinho à minha casa.
Depois do almoço, a cidade silenciava e, num rompante o trem cortava o sono de todos com seu apito estridente!
O comércio abria!
Mamãe saía para o Colégio e o papai para a loja.
Ficava à mesa estudando e brigando para a Marieta diminuir o volume do velho Philco a tocar canções da Rádio Tupinambá de Sobral.
Logo o sol dava trégua e saía já banhado para passear de bicicleta.
Quando de longe se ouvia o maestro Marçal descendo da sede da banda com seus alunos! 
E saiamos acompanhando a banda admirados pelo som do Dobrado!
Era o Duzentos e Vinte.
Dobrado de autoria de Manoel do Espírito Santo que emoldurou muitas tardes alegres de minha terra querida! 
Depois esse Dobrado fez parte de minhas sextas-feiras nos paradões do Colégio Militar de Fortaleza. 
Já não tinha mais a roupa infantil e alegre de minha saudosa Reriutaba.
Agora entoava passos e espadas que batiam continência para velhos oficiais de quem tanta saudade também tenho!
Como e quão era pura e sem frescura minha infância emoldurada por essa canção!
Luiz Lopes Filho
Quarentena Chorosa

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Parmesão do Sertão

Quando a gente vinha de Santa Quitéria, papai comprava queijo bem fresquinho lá e não deixava ninguém cortar.
Armava uma tábua de quatro metros de comprimento  e trinta centímetros de largura e a ancorava nos caibros do telhado pelas pontas icados por quatro tiras de arame recozido. 
Entre a tábua e os caibros havia uma barreira de flandre para evitar que os ratos chegassem à tábua pelo famoso “cheiro do queijo”
E lá, ficávamos nós: nós e os ratos! Querendo comer aqueles queijos e o papai não deixava! 
Não por ser sovina, mas porque queria que os queijos envelhecessem!
E assim acontecia!
Depois de 2 meses, os queijos eram retirados daquela tábua suspensa e servidos no café!
Mas, nosso paladar infantil não era afeto ao do queijo envelhecido!
E o queijo era consumido todinho pelo papai!
Hoje, vemos que tudo é questão de gosto! 
E, em busca do queijo envelhecido, pagamos caro pelo parmesão faixa azul, nome que hoje se alcunha o queijo envelhecido de Santa Quitéria na tábua suspensa da despensa lá de casa!
“Relatos históricos do queijo parmesão!”
Luiz Lopes Filho 

domingo, 2 de junho de 2019

A lambreta

“A verdadeira história desse dinheiro”
Aos 25 anos, meu pai decidiu comprar uma lambreta italiana. 
Às oito horas da manhã, guardou o cartão do banco num dos bolsos laterais da calça de tergal, àquela época uma carta manuscrita contendo os dados do correntista filigranada em autorrelevo com dois selos da República.
Pegou o trem das 8 da manhã e seguiu viagem.
O tempo passou e ainda criança ele me contou o resto da história.
-Meu filho, fui a Sobral, mas quando recebi uma caixinha de madeira toda selada com 500 notas novas em série, fiquei com pena.
Voltei, guardei as cédulas no cofre e aí estão elas sem nenhum mais valor!
Nem dinheiro, nem lambreta!
-Puxa, pai! Como o senhor foi tolo!
-Talvez, mas ninguém sabe dizer a que destino me levaria esta lambreta. Hoje sei o destino que estas cédulas me levaram: o de estar com você hoje aqui!
Luiz Lopes e Silva 
1932-2019

Luto infantil

Em 1974, por volta de abril fui pescar no riacho da Ponte com meu primo Marcelo. 
Quando papai me viu saindo de casa com uma varinha e linha de nylon envolta num anzol de piaba, brigou comigo!
-Sua avó morreu! Estamos de luto! Naquele dia, minha vó Deolinda havia falecido e, papai perdido sua mãe! 
Para mim, com apenas 7 anos de idade, este sentimento não permeava minha mente infantil!
Hoje, ainda muito abalado com a partida do papai, fui obrigado pela minha filha e minha mulher a ir pra a aula de natação! 
Comecei e tentei me abstrair a cada braçada. Aos poucos, uma saudosa melodia ecoava de um saxofone no salão de danças da academia e me conduziu ao passado e às preferências musicais do papai.
Não suportei; minhas lágrimas pareciam me molhar mais que a própria piscina! Parecia que o papai voltava a brigar comigo naquele abril pelo luto de sua mãe, minha vó Diola!
Antes por ir pescar, hoje por ir nadar!
Coisas de saudade! Sei que meu pai não mais brigaria por isso!
Quanta saudade!
Quanta vontade de voltar àquele momento infantil!

Velas de meu pai

Quando meu pai partiu no domingo, um filme de imagens esquecidas não tem fim em minha mente. 
Reavivaram momentos tristes, mas os felizes foram mais coloridos! 
Lembro-me que para mim, menino de poucos e talvez 8 anos, dia de finados não era um dia triste!
Era um dia em que meu pai vendia de tudo em seu comércio. Desde bicicletas até velas.
E, em dia de finados, papai reunia dezenas de meninos para vender velas em caixinhas de papelão contendo de todo os tamanhos: pequenas, médias e grandonas, como assim chamávamos. 
Subíamos pelo beco dos Correios e sem oferecer, as pessoas já pediam um pacote de velas para homenagear seus entes que haviam se ido.
Naqueles trocados, havia nossa parte. 
Aos poucos, de três da tarde até cinco, o movimento aumentava e ia se concentrando no Cruzeiro.
O Cruzeiro era o marco zero do cemitério.
Ali muitas velas eram queimadas por pessoas que não encontravam os túmulos de seus entes. 
Dizia-se e amedrontavam-nos que ali se reuniam todas as almas abandonadas: boas, más, assustadoras e passivas. 
Aquele líquido parafinoso escorria do pé do cruzeiro e percorria as cicatrizes do chão rejeitado e sujo daquele local até perder o valor e solidificar-se em algum buraco de formigueiro.
Terminando a venda das velas, ia me encontrar com meu pai no túmulo da família Lopes & Calixto, onde ele passava horas e horas brigando com o vento pela permanência das velas acesas. 
Naquela época estavam sepultados somente meus avós José Calixto e Dona Deolinda Lopes. 
Todos os demais ali estavam prestando homenagem a seus pais: tio Sitônio, tio Osmundo, tio Deusdedit, tio Assis, tia Beatriz, tia Julita e, por fim, o caçula dos Calixtos: meu pai!
E os dias, anos, décadas correram rápido!
Hoje numa dor imensa, vi meu pai cruzar a imaginária linha de quem está dentro ou fora da lápide. De quem está aquém ou além! 
E não consigo me conformar com essa situação!
Antes era um dia de venda de velas e não sofria uma lágrima de saudades!
Hoje, não me imagino velar meu querido pai!
Amava meus tios! Meus avós não posso assim mensurar o amor. 
Não os conhecia no afeto por tão criança conviver ou nem! 
Mas, meu pai! Ah, papai! 
Não imaginava você sendo velado!
Te amo! 💕e o tempo muda tão rápido!
Ora estamos de um lado, amanhã doutro!
Sejamos fraternos e misericordiosos! 

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Teoria da Máscara de Avião


Teoria da Máscara de Avião

Quando viajamos de avião, o comissário de bordo nos avisa que, em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão de um compartimento.
Orienta-nos que deveremos pôr a máscara em nós mesmos para depois ajudar quem está a nosso lado, principalmente se crianças forem.
Analogamente, deparamo-nos com este paradigma diariamente.
Seja no plano material ou espiritual. 
Como poderemos ajudar outrem a sair de um problema financeiro, se estamos com nossas contas atrasadas? 
Como poderemos apoiar alguém triste se deprimidos estamos?
Esta teoria vai antagonicamente em direção à boa prática cristã!
E então, como agirmos? 
Influenciados pelo celebrante da missa dominical ou orientados pelo comissário de bordo?
Ambos estão pensando no céu!
O comissário na queda abrupta do céu e o padre na subida ao mesmo!
Mensuremos pois em que plano ou cinética estaremos!
Nada na vida é absoluto! Tudo tem uma brecha de relatividade! E é por essa minhoca relativista que conseguimos visualizar o céu por uma fresta de uma janela!
Cuidemo-nos! Primeiro cuidemos-nos!




“Iuuurrrrrullll”


“Iuuurrrrrullll”


Nestes dias transgênicos, onde se impera os displays luminosos das tevês, tablets e telefones de versões dinâmicas, estamos muito acostumados ao conforto e à dependência absoluta da energia elétrica em nossas residências.
Só nos deparamos ante a grande importância da energia, quando nos falta luz e força!
O condicionamento é tão forte que, mesmo sabendo que faltou energia, automaticamente vamos aos interruptores ligar a luz ou à tomada, ligar nossos celulares.
Nesta noite somente permaneceu a luz das estrelas no céu e, aqui embaixo, pontos iluminados por geradores!
Muitos, em função da violência, permaneceram trancados em suas casas esperando a luz elétrica voltar.
Milhares de moradores permaneceram sem energia elétrica por muitas horas e ainda há muita gente sem luz em suas casas.
Sem energia, para de funcionar tudo e parece que ficamos atônitos totalmente e sem saber o que fazer.
É uma dependência irrestrita da sociedade contemporânea para com a energia.
Na minha infância não era assim!
Até gostávamos quando faltava energia!
Isto acontecia no período chuvosos: disjuntores ou transformadores “gripavam” com as primeiras gotas ou com os fugazes relâmpagos e deixavam a pequena cidade à luz de velas e lamparinas.
Lá em casa tinha um lampião. Era nossa luz de emergência movida a querosene que incandescia uma camisa de película que se desmanchava a um leve toque.
Faltou energia, havia dois caminhos a seguir correndo: ou para a cama de nossos pais ou para a calçada iluminada pelas estrelas.
Não havia dia melhor para nós meninos daquela época que um dia de falta de energia!
Como era bom termos a família toda no ninho dos pais ouvindo estórias de trancoso!
Como era agradável reunirmo-nos na calçada e observarmos tantas famílias a fazer o mesmo!
Olhar o céu; aguardar uma estrela cadente e dar um nó na camisa para fazer um pedido; acender uma pequena fogueira e assar carne ou milho verde; ouvir histórias de assombração; ver nossa irmã mais nova adormecer no colo da mamãe; receber uma assada espiga de milho do papai!
E, por que não:
Ouvir a cidade inteira gritando comemorando o retorno da energia num uníssono e forte grito: iuurruuuullll
Pensei que nunca mais fosse ouvir isso!
Muito menos aqui numa capital!
Mas hoje ouvi o saudoso grito típico de cearense: “iurrrrrruuuuuullllll”

Luiz Lopes, 21 de março de 2018